Gênero Textual: Crônica
Em
tempos de pandemia
Qual é a função de um vírus? Hoje
pergunto-me o que podemos aprender com a pandemia do coronavírus. Desde a gripe
espanhola em 1917, nunca tínhamos precisado tanto da cooperação entre governos
e das próprias pessoas para conter uma doença que já está matando milhares. É verdade
que muitos sobreviverão, porque são jovens, não têm hipertensão, não têm diabetes,
não têm AIDS, não fazem quimioterapia, não precisam de hemodiálise, não têm
doença pulmonar, não fizeram transplante, não têm problema cardíaco; outros
sobreviverão porque detêm o dinheiro e podem pagar pelo melhor hospital, por
melhores médicos, pelos remédios descobertos, por respiradores artificiais; mas
também é verdade que muitos outros morrerão por causa de suas idades avançadas,
de doenças preexistentes, de tratamentos que baixam a imunidade e pelo simples
fato de ser pobre, de não ter acesso a saneamento básico, a água potável, a sabão
para lavar as mãos, a uma comida adequada para manter a imunidade em dia. Quem
tem mais valor? Quem merece viver e quem pode morrer sem causar consternação e
indignação pública? Quando assistimos aos noticiários e vemos o número de
mortos, muitos pensam que “como não foi ninguém da minha família, tudo bem,
bola pra frente que a economia não pode parar. Foram os avós de outras pessoas,
os pais de outras pessoas, os filhos de outras pessoas, os sobrinhos, os netos,
mas isso não importa porque não tinham nada a ver comigo”. São incapazes de se
sensibilizarem com o drama do outro, de entenderem a importância da
coletividade, do bem comum, da preservação da vida, de todas as vidas, e não
somente dos sortudos e privilegiados que não se enquadram nos chamados grupos
de risco. O nível de insensibilidade é tamanho que nos deparamos com frases do
tipo “só mata velhos”, “só morreu porque tinha diabetes”, “só morreu porque já
tinha câncer”...Esse “só” é o que me assusta! Quantos “sós” vão surgindo até
dizimar boa parte da população? O egoísmo e o individualismo preenchem o vazio
daqueles e daquelas que perderam há muito qualquer sinal de empatia pelo outro,
fazendo da sociedade um poço cada vez mais profundo, em que aqueles que estão
mais acima aproveitam as benesses e os que estão abaixo contentam-se com os
restos, ou matam para sobreviver, ou morrem com nada. Muitos se acham imunes e
menosprezam os que não são; muitos querem salvar seus negócios, preferindo, assim, perder suas vidas ou a de seus entes. Lembro a estes que no caixão o dinheiro
não irá, restarão apenas a prestação de contas, a hora de pesar na balança a
maldade e a bondade, o egoísmo e a generosidade, o individualismo e a
solidariedade. Nesta balança, não importa o poder aquisitivo, não importam as
roupas e os calçados de grife, não importa a carcaça, mas importam as ações, a
consciência e o espírito leve. O vírus, mesmo sem querer, veio nos ensinar muitas
coisas, coisas simples, que, inclusive, já conhecemos, contudo não valorizamos
ou esquecemo-nos de realçá-las em nossa vida cansada, corrida e atropelada. Agora,
com mais tempo, temos a chance de cuidar sem pressa dos nossos filhos, dos
nossos pais, do nosso lar; preparar aquela comida que faz bem ao corpo e/ou à
alma; dar uma atenção maior aos nossos pets; higienizar tudo, até as mentes; ler
os escritores que há muito queríamos, mas o relógio não deixava; transcender o
espírito e nos solidarizar com aqueles que são mais vulneráveis. A oportunidade
a pandemia nos deu, só resta saber se nós iremos aproveitar e nos humanizar, ou
se ficaremos estáticos cada um em seu andar, insensíveis e egoístas, esperando
a morte chegar.
Autoria: Suziane Brasil Coelho
Professora de Língua
Portuguesa